Ninguém Tem Pena das Pessoas Felizes
Ninguém tem pena
das pessoas felizes. Os Portugueses adoram ter angústias, inseguranças,
dúvidas existenciais dilacerantes, porque é isso que funciona na nossa
sociedade. As pessoas com problemas são sempre mais interessantes. Nós,
os tontos, não temos interesse nenhum porque somos felizes. Somos
felizes, somos tontaços, não podemos ter graça nem salvação. Muitos
felizardos (a própria palavra tem um soar repelente, rimador de
«javardo») vêem-se obrigados a fingir a dor que deveras não sentem, só
para poderem «brincar» com os outros meninos.
É assim. Chega um infeliz ao pé de nós e diz que não sabe se há-de ir
beber uma cerveja ou matar-se. E pergunta, depois de ter feito o
inventário das tristezas das últimas 24 horas: «E tu? Sempre bem
disposto, não?». O que é que se pode responder? Apetece mentir e dizer
que nos morreu uma avó, que nos atraiçoou uma namorada, que nos
atropelaram a cadelinha ali na estrada de Sines.
E, no entanto, as pessoas felizes também sofrem muito. Sofrem,
sobretudo, de «culpa». Se elas estão felizes, rodeadas de pessoas
tristes, é lógico que pensem que há ali qualquer coisa que não bate
certo. As infelizes acusam sempre os felizes de terem a culpa. É como a
polícia que vai à procura de quem roubou as jóias e chega à taberna e
prende o meliante com ar mais bem disposto. Em Portugal, se alguém se
mostra feliz é logo suspeito de tudo e mais alguma coisa. «Julgas que é
por acaso que aquele marmanjo anda tão bem disposto?», diz o espertalhão
para outro macambúzio. É normal andar muito em baixo, mas há gato se
alguém andar nem que seja só um bocadinho «em cima». Pensam logo que é
«em cima» de alguém.
Ser feliz no meio de muita gente infeliz é como ser muito rico no meio de um bairro-de-lata. Só sabe bem a quem for perverso.
Infelizmente, a felicidade não é contagiosa. A alegria, sim, e a boa
disposição, talvez, mas a felicidade, jamais. Porque a felicidade não
pode ser partilhada, não pode ser explicada, não tem propriamente razão.
Não se pode rir em Portugal sem que pensem que se está a rir de alguém
ou de qualquer coisa. Um sorriso que se sorria a uma pessoa
desconhecida, só para desabafar, é imediatamente mal interpretado. Em
Portugal, as pessoas felizes sofrem de ser confundidas com as pessoas
contentes.
Miguel Esteves Cardoso, in 'Os Meus Problemas'